sexta-feira, 21 de março de 2014

Eleições no Québec colocam a questão da independência no centro do debate

O debate dos chefes de partido e candidatos ao posto de Primeiro Ministro reforçou a impressão dos últimos dias de que a questão da independência da província está no centro da campanha, uma posição que necessariamente não ajuda os partidos independentistas. Detalhes.


Da esquerda à direita, candidatos: Pauline Maurois (PQ), Philippe Couillard (PLQ), François Legault (CAQ) e Françoise David (QS)

Desde o início o mandato de FrancePo é de discutir a política francesa, mas vou me permitir desta vez fazer um pequeno détour ao Québec, região de língua francesa da América do Norte que já foi conhecida outrora pelo nome de Nova França. Tanto por esse passado em comum com a França como do fato de que me encontro instalado nessa maravilhosa região convido vocês a leitura deste post de impressões sobre a campanha eleitoral no Québec.

O Québec é uma sociedade distinta dentro do Canadá devido à sua língua e cultura. Se no passado os quebequenses já se diziam, a julgar as palavras do deputado Henri Bourassa, como os verdadeiros canadenses em uma época que os canadenses de língua inglesa continuavam ligados ao Império Inglês, a partir dos anos 50 o Québec mergulhou em um profundo despertar de sua identidade québécoise. Esse processo levou os quebequenses às urnas por duas oportunidades (em 1980 e 1995) para decidir sobre sua independência do restante do Canadá. Mesmo com dois reveses (o segundo por menos de 55 mil votos) o projeto de independência do Québec continua a contar com apoio popular. Historicamente é o Partido Quebequense (PQ) o principal responsável por levar adiante a idéia.  O partido não detém, contudo, o monopólio deste projeto no cenário político local, outras formações como a Option Nationale e Québec Solidaire (QS) surgem como plataformas independentistas.

Após um longo reinado de 9 anos do Partido Liberal do Québec (PLQ), porta voz dos federalistas na província, o PQ venceu as eleições de 2012 e Pauline Marois assumiu o posto de Primeira Ministra do Québec. Não conseguindo obter a maioria na Assembleia Nacional e não dispondo de alianças com outros grupos parlamentares o PQ formou um governo minoritário. Em 18 meses de governo, Marois se dedicou, em especial, ao controverso projeto de Carta de Valores Quebequenses[i], que tem como principais pontos: (1) proibir o uso de símbolos religiosos ostensivos, (2) neutralidade do pessoal da função pública e (3) tornar obrigatório que funcionários públicos trabalhem com o rosto descoberto (o alvo aqui é bem claro: mulheres de confissão muçulmana).   
 
É nesse cenário que a Primeira Ministra Pauline Marois dissolveu a Assembleia Nacional em 5 de março e decretou a realização de eleições gerais no dia 7 de abril.

Dentre os argumentos que Pauline Marois dispunha para respaldar sua decisão estava a recuperação da popularidade de seu governo após uma bem sucedida exposição midiática no trágico acidente de trem em Lac-Mégantic, que deixou 47 mortos. Ainda, sondagens publicadas entre os meses de janeiro e fevereiro colocavam o PQ em primeira posição nas intenções de voto, com possibilidade de obter a maioria necessária na Assembleia Nacional. O argumento final foi que a oposição bloqueava as ações do governo e votaria contra o orçamento que seria apresentado pelo governo do PQ.

Aparentemente a eleição caminhava em direção ao domínio das questões econômicas. Porém, praticamente 20 anos depois da realização do último referendo (dos quais, 10 anos com governos do PQ) a questão nacional foi trazida de volta ao centro do debate.
Já em sua declaração de candidatura, em 5 de março, o liberal Philippe Couillard, do qual diz se tratar de um dos mais fervorosos federalistas do Québec, declarou ir à luta contra um governo que odeia e que promoverá um novo referendo. As cartas já estavam postas. De lá até ontem, pouco adiantava se tentássemos discutir de economia, da exploração de petróleo na ilha de Anticosti ou de qualquer outro assunto, a questão da independência sempre surgia.

O debate

A apresentação dos candidatos no debate de ontem a noite deu o tom das discussões. Todos se referiram ao referendo. François Legault (CAQ, direita), que abriu as apresentações, criticou liberais e pequistas por trazerem este assunto à campanha. Couillard, afirmou que Marois promoverá um novo referendo se eleita enquanto que ele se ocuparia dos verdadeiros problemas do Québec, a saber: emprego, saúde e educação. Marois, por sua vez, afirmou que a eleição não se trata da questão referendária. Françoise David (QS, esquerda), que concluiu as apresentações, prometeu fazer do Québec um país para todos e se lança como opção ao domínio PQ x PLQ.

Ainda que a Rádio Canadá tenha reservado o último dos quatro blocos de trinta minutos para a questão nacional e identitária, não foi preciso esperar o final do debate para a independência do Québec ser abordada. Logo no primeiro bloco de perguntas, Couillard acusou o governo Marois de promover a divisão dos quebequenses com a Carta de Valores, de se engajar a realizar um novo referendo assim que eleita e se recusar de tratar dos verdadeiros problemas do Québec. Há semanas esse é o discurso de Couillard e de maneira geral ele está colando bem: ¾ dos quebequenses acreditam que se Marois for reeleita ela promoverá um novo referendo. A mesma proporção de quebequenses é contrária a realização de um referendo.

Neste cenário, não é surpresa que os liberais insistam tanto sobre a questão nacional. A idéia geral do partido é vender a idéia de que uma vitória do PQ levará a realização de um terceiro referendo. O bem sucedido slogan da campanha liberal diz muito sobre isso: “Juntos, tratamos dos verdadeiros problemas”. Ele dá conta de que os liberais querem que o Québec permaneça no Canadá e que as principais agendas do PQ, seja a Carta de Valores, seja o projeto de independência, não constituem reais necessidades do Québec no momento e que tratando disso o partido negligencia a economia e a criação de empregos.

Problemas do lado do PQ

O magnata da mídia, Pierre-Karl Péladeau candidato do PQ em Sain-Jérôme
Os pequistas estão em uma sinuca de bico. Quanto maior o espaço que a questão nacional ocupa no debate, menores se tornam as intenções de voto em Pauline Marois (que perdeu a liderança para os liberais nesta semana). Em todo caso, Marois não pode fugir deste debate, pois a julgar o artigo 1° do estatuto do partido, a independência do Québec é sua razão de ser. A independência do Québec não passa apenas por um referendo vitorioso, mas a construção de condições favoráveis para isso. Mas um discurso nessa linha realmente não seria capaz de motivar a base pequista, pois, fazendo uma analogia imperfeita, alguém já viu um partido socialista ganhar eleições ao promover antes da ruptura com a capitalismo a construção apenas das condições favoráveis?

Restringida por essas dificuldades, Marois adotou um discurso ni-ni quando de sua declaração de campanha. Nem se comprometia a realizar um referendo, nem afastava qualquer possibilidade. Não tendo funcionado bem, Marois adotou uma nova retórica no debate ontem à noite (ainda que obedecendo à mesma lógica do ­ni-ni). Questionada por Legault ela declarou: “Não realizarei o referendo [e nesse momento ela fez uma pausa, deixando todo o Québec inquieto] enquanto os quebequenses não estiverem preparados”. Ainda que sucessivamente atacada por seus rivais de direita, Couillard e Legault, analistas da Rádio-Canadá pouparam a líder pequista de críticas e afirmaram que esta é a via possível que ela adote. De um lado, procura-se tranqüilizar o Québec (e, não menos importante, o governo federal de Ottawa) de que a realização do referendo não é a prioridade, ainda que ele será realizado algum dia e, de outro lado, não desmotiva a base militante ao não esvaziar suas expectativas de realizar a independência do Québec. Em recente entrevista à Radio-Canadá, o ministro das Relações Internacionais do Québec, Jean-François Lisée, reafirmou que o partido pretende realizar  um novo referendo, sem estabelecer contudo um prazo.

Nos dias que precederam ao debate de ontem à noite, diversas pesquisas de intenção de voto foram divulgadas. Os números divergem, mas a tendência é a mesma: os liberais passaram a frente do PQ nas intenções de voto. É nítido que os liberais estão sendo bem sucedidos em sua tática eleitoral, o PQ por sua vez enfrenta dificuldades em lidar com o debate do referendo. Em uma pesquisa publicada no Journal de Montréal no primeiro dia de campanha, 34% dos quebequenses votariam pelo sim em um referendo sobre a independência da província. Esse número pode servir de limite aos votos que o PQ poderá obter no próximo dia 7 e, sem surpresa, as intenções de voto no PQ têm orbitado em torno desse porcentual. O sucesso dos liberais, contudo, se deve, sobretudo, a queda da coalizão de François Legault.

Os caquistas, como são chamados os partidários de Legault, foram a grande surpresa da eleição de 2012. Ao elegerem 19 deputados, foram em grande parte responsáveis da vitória do PQ, pois a maior parte dos deputados caquistas foram eleitos em antigas regiões detidas pelos liberais, que perderam 16 deputados na última eleição, abrindo a porta para um governo minoritário pequista. Atualmente, contudo a formação de François Legault encontra graves dificuldades e recebe apenas pouco mais de 10% das intenções de voto, dificilmente o partido elegerá mais de 10 deputados e devido sua proximidade ideológica a maior parte dos votos do CAQ tende a ir ao PLQ, o que explica a vantagem que este criou em relação ao PQ.

Qual futuro para o PQ?

Pauline Marois em campanha: dificuldades para balancear o projeto independentista com os desejos da opinião pública

Em 5 de março quando dissolveu a Assembleia Geral, Pauline Marois tomava como ponto de partida que seu partido se manteria no governo e teria ainda grandes chances de formar um governo majoritário. Tudo parecido ter sido joué d’avance e a filiação do magnata da mídia Pierre-Karl Péladeau ao PQ parecia ser a cereja no bolo. Mais que a primeira ministra Marois, foi Péladeau que incentivou o retorno do debate independentista entre os pequistas. 

A jogada parecia ótima: não apenas os pequistas obteriam a maioria que buscavam como ainda reascenderiam a flama independentista entre os quebequenses. Contudo, ela se revelou um grande passo em falso. 

Ao responder às provocações de Couillard, Péladeau não somente reascendeu o espírito independentista como também fez ressurgir a suspeita de que o PQ chamaria os quebequenses à um terceiro referendo. Como lembrou ontem o jornalista do Devoir, Michel David: uma derrota do PQ em abril terá as mesmas conseqüências dramáticas das derrotas dos referendos de 1980 e 1995. 

A chegada de Péladeau ao PQ também não pode ser relativizada. Uma eventual derrota do PQ daria lugar a eleições internas para substituir Pauline Marois e neste caso, Péladeau surgiria como um dos principais nomes à sucessão. O candidato vedete que no passado já proferiu pesadas críticas ao movimento sindicalista representaria uma profunda ruptura com a tradição social-democrata do PQ, a saída de muitos pequistas ao partido soberanista de esquerda Québec Solidaire surge como uma hipótese razoável. Com isso, mesmo que sobreviva a uma derrota em abril próximo, a ruptura será tão profunda que o PQ deixará de existir como tal.

Para reverter a tendência, Pauline Marois deverá segurar o vigor de alguns de seus partidários, como Péladeau, em discutir a questão nacional quebequense de forma a tranqüilizar os quebequenses. Deverá também explorar pontos fracos dos liberais, como a luta contra a corrupção, e mostrar que é a candidata melhor preparada para relançar a economia quebequense e estabelecer boas relações com o governo federal. O debate parece ter sido uma oportunidade perdida, pois a mídia estava de acordo hoje que nenhum candidato se destacou ontem à noite.

21 de março de 2014.
Montréal, Québec.
Oscar Augusto Berg

Abaixo, fotos das capas e reportagens sobre o debate dos dois jornais distribuídos gratuitamente na rede de transporte público de Montréal.

Capa do jornal Métro Montréal que destaca “Não haverá referendo”

Reportagem do Métro Montréal: “Referendo rouba a cena no debate”

Capa do jornal Montréal 24 heures: “Discussões acaloradas”

Reportagem do jornal Montréal 24 heures: “Pauline Marois mantém a dúvida sobre um referendo”






[i] Para quem se interessar pela Carta nada melhor que escutar Bernard Drainville, ministro responsável pelo projeto, explicá-la e tentar vender seu peixe nos seguintes endereços:  http://www.youtube.com/watch?v=vHn_KvnIb9g#t=75 e http://www.youtube.com/watch?v=_WhMF6VdRrU


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