quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Droit Devant

Sarkozy está de volta.

Nicolas Sarkozy, eleito presidente da UMP


                Existe uma música da banda quebequense Cowboys Fringants que diz o seguinte: « prépare toi petit garçon, elle sera longue l’expédition, et même si on n’en revient jamais vivant, Il faut marcher droit devant ». O nome da música é o mesmo deste post, ‘direto à frente’, e resume bem o que deve fazer o recém-eleito Presidente do partido União por um Movimento Popular (UMP), Nicolas Sarkozy, em sua estratégia de (re)conquistar o coração dos franceses.

            Stratégie é uma boa palavra para descrever os movimentos do ex-presidente francês. Discursos, aparições públicas, fotos na imprensa, absolutamente nada, foi feito sem pensar ou passou em margem da estratégia. Nem mesmo a anunciada aposentadoria da vida política francesa. Tudo se inscreve em uma minuciosa estratégia que, ao menos, na cabeça de Sarkozy é coerente e capaz de livrá-lo do título de ex-presidente impopular para coroá-lo “salvador da pátria”. Há dois séculos, Napoleão Bonaparte deixou o exílio na Ilha de Elba para conquistar a França por uma segunda vez. Sarkozy acredita que pode (e deve) fazer o mesmo.

            Em linhas gerais, a estratégia de Sarkozy começou já no anúncio de aposentadoria. Evidentemente que o objetivo não era deixar a política, mas deixar sua família política órfã de liderança (a qual en toute évidence caberia a ele), de modo que os militantes implorassem por seu “retorno” a vida política, legitimando este salto. Em um primeiro momento, tudo funcionou bem. A direita francesa, limitada aos postes (piada pronta) Jean-François Copé e François Fillon, ficou rachada após as brigas entre ambos pela presidência da UMP em 2012. Contudo, o tempo virou: Sarkozy viu seu nome envolvido em grandes denúncias de corrupção, as contas de sua campanha apresentaram um enorme déficit (colocando em causa até mesmo a saúde financeira da UMP) e um verdadeiro competidor surgiu: o ex Primeiro Ministro e prefeito de Bordeaux, Alain Juppé, outrora nomeado pelo Presidente Jacques Chirac como “provavelmente o melhor dentre nós”.

            Dotado de incrível lábia, Sarkozy contornou os problemas relacionados às denúncias de corrupção. Ainda assim, Alain Juppé continua a ser uma pedra no seu sapato. A revista L’express lhe concedeu o título de “O homem que quer salvar a direita” e as pesquisas de intenção de voto, por sua vez, o colocam como único candidato da direita capaz de se impor tranquilamente sobre Marine Le Pen (hoje a real adversária) e François Hollande. A volta de Juppé fez com que a primeira fase da estratégia de Sarkozy falhasse, ou seja, o ex-presidente não é hoje o líder incontestável da direita que ele esperava ser, et ce apesar de sua recente eleição a presidência da UMP.

Revista L'Express revelou os planos do salvador da direita francesa. Bons tempos em que se tinha acesso a mídia francesa em Montréal.


            A vitória eleitoral é minorada por duas razões. Em primeiro lugar, Juppé ficou de fora da disputa se resguardando para a única disputa que importa: a presidência francesa, em 2017. Já amado e odiado pela opinião pública, o prefeito de Bordeaux sabe bem que precisa se resguardar para que chegue ao final da maratona com chances de vitória (Hollande é o único outro político a ter plena noção disso). Assim, o confronto decisivo ainda deverá ser travado para que Sarkozy seja de fato lançado candidato da UMP à presidência francesa, portanto, rien n’est joué d’avance. Em segundo lugar, Sarkozy não venceu a eleição com um score “soviético” (como colocado pelo Le Monde) e viu o jovem Bruno Le Maire (antigo aliado de primeira hora) conquistar 30% dos votos. A juventude é um ponto forte de Le Maire, pois Juppé, cuja idade já ultrapassa os 70, pode não ter saúde necessária para bancar uma campanha presidencial e, em um dado momento, supõe-se que a questão da renovação do partido surgirá.

            Concluímos que vencer a presidência da UMP foi apenas um primeiro degrau da estratégia de Sakorzy já que tanto sua aposentadoria, como seu retorno político foram atos falhos (há quem diga que o livro da ex primeira dama Valérie Trierweiller no qual ela afirma que seu ex-companheiro François Hollande odeia os pobres e os chama de banguelas tenha sido o grande événement da temporada política francesa, até porque House of Cards ainda não estreou no Hexágono). Sarkozy ainda deverá provar que tem gás para se desprender da imagem que esculpiu em cinco anos de presidência e mostrar que seu arrependimento era verdadeiro e não somente um componente de seu marketing pessoal. O que é difícil de acreditar, pois já na noite da vitória seu comboio “presidencial” foi flagrado andando em faixas reservadas aos ônibus para fugir do trânsito parisiense. Arrependido? Peut-être. Bling-bling? Toujours.

            Em um âmbito mais expandido devemos nos questionar acerca do efeito positivo da eleição de Sarkozy para a direita francesa. Será que essa família ainda pode se salvar, conforme L’express sugeriu que Juppé fosse capaz? Essa pergunta ainda carecerá de respostas. A meu ver Sarkoz, na verdade, cria mais problemas do que resolve. A estratégia de retorno à la Napoleão não deu certo. Por uma simples razão. Ao passo que o baixinho córsego de fato se ausentou da vida pública francesa, o baixinho dos bairros chiques de Paris sempre esteve [omni]presente (até mesmo quando ele pretendia estar ausente). Ninguém até hoje sentiu falta de Sarkozy e o seu retorno nada mais é que o retorno daquele que nunca foi. Paradoxalmente quem poderá desfrutar mais da eleição de Sarkozy à presidência da UMP são seus adversários. Marine Le Pen torce por esmagá-lo nas eleições de meio mandato (assim como já vez nas eleições para o Parlamento Europeu). Hollande por sua vez torcerá para que os franceses coloquem seu adversário de 2012 no escanteio e que no segundo turno de 2017 os votos da UMP venham para ele no combate direto contra a extrema-direita, assim como os socialistas votaram em Chirac em 2002 contra o papai Le Pen. Como diriam os Cowboys do Québec, a expedição será longa e nem sempre voltaremos vivos.

Sarkô e Juppé, inimigos declarados


Oscar Berg
3 de dezembro de 2014.

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Confidências dos Embaixadores

Com o objetivo de tornar mais conhecida as atribuições dos embaixadores, o Ministério dos Assuntos Estrangeiros da França produziu um web documentário com quatorze diplomatas que relatam um momento importante de sua experiência de campo

Salon de la Rotonde, escritório do Ministro de Assuntos Estrangeiros no Quai d'Orsay, em Paris

"Confissões dos embaixadores" é o novo web documentário produzido pelo Quai d'Orsay, o ministério de assuntos estrangeiros da França, nele quatorze diplomatas franceses relatam um momento importante de suas carreiras. De missões econômicas ou humanitárias a negociações de tratados internacionais, passando pelo auxílio aos franceses em momentos de urgência, os embaixadores franceses revelam a realidade de uma das profissões mais prestigiadas do mundo. O documentário está disponível no link Ministério abaixo e está disponível apenas em francês. Além de conhecer um pouco mais sobre a atividade dos embaixadores, é hora de você fazer uma mise à jour de suas competências na língua de Molière.


Oscar Berg
Canoas,  06/08/2014 

segunda-feira, 31 de março de 2014

Quem é Manuel Valls, o novo Primeiro ministro francês?

O péssimo resultado dos socialistas nas eleições municiais levou o Presidente François Hollande a demitir seu Primeiro Ministro Jean-Marc Ayrault e nomear o desconhecido dos brasileiros Manuel Valls ao posto. Conheça o novo premiê francês responsável a partir de agora de salvar os socialistas franceses.



O prazo de validade de Jean-Marc Ayrault a frente da chefia de governo já estava contado a muito tempo. No final do ano passado os rumores já eram grandes. Na época circulava o nome do ambicioso ministro do Interior (pasta de maior importância do governo, uma espécie de Ministério da Segurança Pública brasileiro) Manuel Valls e da prefeita de Lille, Martine Aubry. Ainda que eu apostasse já na época em uma troca de chefia a razão estava com um amigo militante socialista de La Rochelle que me confiou: “Jean-Marc Ayrault é muito fiel ao Presidente, é um bom cheval de bataille. Hollande está certo em mantê-lo”. Jean-Marc Ayrault, contudo, não resistiu ao grande choque da derrota do PS nas eleições municipais realizadas em 23 e 30 de março. Ao passo que em 2008, os socialistas foram os grandes vencedores dessas eleições, quatro anos mais tarde eles foram os grandes derrotados ao perderem cidades importantes como Niort, Reims, Saint-Étienne e Toulouse (a lista completa está no Le Monde) e, pior, em muitas cidades se tornaram a terceira força política graças ao surpreendente resultado da extrema-direita. Mesmo bastiões socialistas como no norte foram perdidos (ainda que Aubry tenha sido reeleita em Lille). Falando em bastiões, os comunistas também estão em choque com a derrota de Catherine Peyge (femme politique que tive o prazer de conhecer e por quem nutri uma grande simpatia) em Bobigny, cidade do subúrbio parisiense comandada pelos comunistas há um século!

Em face desse grande fracasso, François Hollande não teve outra escolha senão a de iniciar uma reformulação de sua equipe de governo, a começar por seu Primeiro Ministro muitos analistas políticos tendo indicado que a derrota socialista foi uma resposta à impopularidade do Presidente Hollande e não necessariamente um voto de desconfiança às administrações socialistas locais. De certa forma, a eleição local tomou ares de disputa nacional.

Quem é Manuel Valls?
Jovem, 51 anos, ministro do interior, deputado de Essone e prefeito de Évry e a partir de hoje Primeiro Ministro, Manuel Valls tem um bom currículo que o coloca em postos de sonhar com a presidência francesa já em 2017, o que preocupa muita gente a começar pelo Presidente em exercício François Hollande (ainda não se sabe se ele pretenderá brigar um segundo mandato). Manuel Valls já apareceu uma vez aqui no blog FrancePo quando das primárias do Partido Socialista nas quais ele terminou penúltimo colocado com 6% dos votos.

À época, Valls foi descrito como o plaidoyeur de uma política realista. Ainda que isso levasse os socialistas à se aproximarem dos centristas e mesmo da centro-direita, algo que preocupou muito os militantes socialistas à época mas, sejamos sinceros, após dois anos de presidência de François Hollande percebemos que esse é o menor medo dos socialistas agora. Vale ressaltar que Valls recebeu, em 2011, o apoio da influente publicação The Economist que o apresentou como o único portador dos valores da esquerda moderna em detrimento aos ‘dinossauros do PS francês’ (leia-se François Hollande e outros).

Expert do PS em questões de segurança pública, Valls foi nomeado por François Hollande quando de sua eleição ao Ministério do Interior em detrimento de ‘dinossauros do PS’ que sonhavam com o posto, como François Rebsamen que poderá agora entrar no governo. Em seu posto, Valls se envolveu em grandes polêmicas, mas se caracterizou como o campeão da opinião pública, sendo um dos políticos mais populares da França, algo raro em meio ao governo socialista acusado de não fazer nada para conter a crise.

É certo que Valls terá grandes desafios a sua frente e o primeiro deles será justamente negociar com o presidente os nomes de seus ministros. Personalidades socialistas batem a porta do governo como Ségolène Royal e Rebsamen, outros buscam mais espaço no governo como Stéphane Le Foll (agricultura), Pascal Lamy (cidade) e Najat Vallaud-Belkacem (direito das mulheres e porta voz do governo). Outros ainda lutam para manter seus postos, como Arnaud Montebourg (recuperação industrial) e Pierre Moscovici (economia e finanças). Valls e Hollande, agora juntos, terão que balancear as aspirações pessoais dos ministros com o recado das urnas. Algo nada fácil. Ainda, há algumas semanas os verdes declararam que não participariam de um governo com Valls em sua chefia. O bom resultado dos verdes nas eleições municipais (uma exceção na esquerda. Notável vitória em Grenoble contra os socialistas) aumentou ainda mais sua margem de manobra. É provável que Cecile Duflot (habitação) busque finalmente o ministério do meio ambiente. O atual ministro Philippe Martin, segundo o Nouvel Observateur, estaria preparado para deixar a pasta.

Para concluir, é possível que François Hollande tenha criado um belo problema para sua reeleição em 2017. Um desempenho positivo de Valls não recuperaria somente a pele do governo, mas também o lançaria como candidato natural à sucessão de Hollande ao passo que este estaria em condições de disputar um segundo mandato. O fato é que Hollande não teve outra escolha. Dentro os nomes à sucessão de Ayrault o de Valls era o que mais agradava: Hollande e Aubry não têm boas relações; Laurent Fabius (relações exteriores, político mais popular da França conforme recentes sondagens) já esteve no posto de Primeiro ministro na época de Mitterrand (1985-1986) e apresentou uma performance severamente criticada; Jean-Yves Le Drian (defesa) não encarna o espírito de mudança demandado pelos franceses; e Ayrault não teria nada de novo a oferecer. Prevaleceu a lógica e Manuel Valls foi nomeado para Matignon, o que pode decepcionar em especiais os militantes mais à esquerda do PS.

Oscar Berg
Montréal (Québec), 31/03/2014

sexta-feira, 21 de março de 2014

Eleições no Québec colocam a questão da independência no centro do debate

O debate dos chefes de partido e candidatos ao posto de Primeiro Ministro reforçou a impressão dos últimos dias de que a questão da independência da província está no centro da campanha, uma posição que necessariamente não ajuda os partidos independentistas. Detalhes.


Da esquerda à direita, candidatos: Pauline Maurois (PQ), Philippe Couillard (PLQ), François Legault (CAQ) e Françoise David (QS)

Desde o início o mandato de FrancePo é de discutir a política francesa, mas vou me permitir desta vez fazer um pequeno détour ao Québec, região de língua francesa da América do Norte que já foi conhecida outrora pelo nome de Nova França. Tanto por esse passado em comum com a França como do fato de que me encontro instalado nessa maravilhosa região convido vocês a leitura deste post de impressões sobre a campanha eleitoral no Québec.

O Québec é uma sociedade distinta dentro do Canadá devido à sua língua e cultura. Se no passado os quebequenses já se diziam, a julgar as palavras do deputado Henri Bourassa, como os verdadeiros canadenses em uma época que os canadenses de língua inglesa continuavam ligados ao Império Inglês, a partir dos anos 50 o Québec mergulhou em um profundo despertar de sua identidade québécoise. Esse processo levou os quebequenses às urnas por duas oportunidades (em 1980 e 1995) para decidir sobre sua independência do restante do Canadá. Mesmo com dois reveses (o segundo por menos de 55 mil votos) o projeto de independência do Québec continua a contar com apoio popular. Historicamente é o Partido Quebequense (PQ) o principal responsável por levar adiante a idéia.  O partido não detém, contudo, o monopólio deste projeto no cenário político local, outras formações como a Option Nationale e Québec Solidaire (QS) surgem como plataformas independentistas.

Após um longo reinado de 9 anos do Partido Liberal do Québec (PLQ), porta voz dos federalistas na província, o PQ venceu as eleições de 2012 e Pauline Marois assumiu o posto de Primeira Ministra do Québec. Não conseguindo obter a maioria na Assembleia Nacional e não dispondo de alianças com outros grupos parlamentares o PQ formou um governo minoritário. Em 18 meses de governo, Marois se dedicou, em especial, ao controverso projeto de Carta de Valores Quebequenses[i], que tem como principais pontos: (1) proibir o uso de símbolos religiosos ostensivos, (2) neutralidade do pessoal da função pública e (3) tornar obrigatório que funcionários públicos trabalhem com o rosto descoberto (o alvo aqui é bem claro: mulheres de confissão muçulmana).   
 
É nesse cenário que a Primeira Ministra Pauline Marois dissolveu a Assembleia Nacional em 5 de março e decretou a realização de eleições gerais no dia 7 de abril.

Dentre os argumentos que Pauline Marois dispunha para respaldar sua decisão estava a recuperação da popularidade de seu governo após uma bem sucedida exposição midiática no trágico acidente de trem em Lac-Mégantic, que deixou 47 mortos. Ainda, sondagens publicadas entre os meses de janeiro e fevereiro colocavam o PQ em primeira posição nas intenções de voto, com possibilidade de obter a maioria necessária na Assembleia Nacional. O argumento final foi que a oposição bloqueava as ações do governo e votaria contra o orçamento que seria apresentado pelo governo do PQ.

Aparentemente a eleição caminhava em direção ao domínio das questões econômicas. Porém, praticamente 20 anos depois da realização do último referendo (dos quais, 10 anos com governos do PQ) a questão nacional foi trazida de volta ao centro do debate.
Já em sua declaração de candidatura, em 5 de março, o liberal Philippe Couillard, do qual diz se tratar de um dos mais fervorosos federalistas do Québec, declarou ir à luta contra um governo que odeia e que promoverá um novo referendo. As cartas já estavam postas. De lá até ontem, pouco adiantava se tentássemos discutir de economia, da exploração de petróleo na ilha de Anticosti ou de qualquer outro assunto, a questão da independência sempre surgia.

O debate

A apresentação dos candidatos no debate de ontem a noite deu o tom das discussões. Todos se referiram ao referendo. François Legault (CAQ, direita), que abriu as apresentações, criticou liberais e pequistas por trazerem este assunto à campanha. Couillard, afirmou que Marois promoverá um novo referendo se eleita enquanto que ele se ocuparia dos verdadeiros problemas do Québec, a saber: emprego, saúde e educação. Marois, por sua vez, afirmou que a eleição não se trata da questão referendária. Françoise David (QS, esquerda), que concluiu as apresentações, prometeu fazer do Québec um país para todos e se lança como opção ao domínio PQ x PLQ.

Ainda que a Rádio Canadá tenha reservado o último dos quatro blocos de trinta minutos para a questão nacional e identitária, não foi preciso esperar o final do debate para a independência do Québec ser abordada. Logo no primeiro bloco de perguntas, Couillard acusou o governo Marois de promover a divisão dos quebequenses com a Carta de Valores, de se engajar a realizar um novo referendo assim que eleita e se recusar de tratar dos verdadeiros problemas do Québec. Há semanas esse é o discurso de Couillard e de maneira geral ele está colando bem: ¾ dos quebequenses acreditam que se Marois for reeleita ela promoverá um novo referendo. A mesma proporção de quebequenses é contrária a realização de um referendo.

Neste cenário, não é surpresa que os liberais insistam tanto sobre a questão nacional. A idéia geral do partido é vender a idéia de que uma vitória do PQ levará a realização de um terceiro referendo. O bem sucedido slogan da campanha liberal diz muito sobre isso: “Juntos, tratamos dos verdadeiros problemas”. Ele dá conta de que os liberais querem que o Québec permaneça no Canadá e que as principais agendas do PQ, seja a Carta de Valores, seja o projeto de independência, não constituem reais necessidades do Québec no momento e que tratando disso o partido negligencia a economia e a criação de empregos.

Problemas do lado do PQ

O magnata da mídia, Pierre-Karl Péladeau candidato do PQ em Sain-Jérôme
Os pequistas estão em uma sinuca de bico. Quanto maior o espaço que a questão nacional ocupa no debate, menores se tornam as intenções de voto em Pauline Marois (que perdeu a liderança para os liberais nesta semana). Em todo caso, Marois não pode fugir deste debate, pois a julgar o artigo 1° do estatuto do partido, a independência do Québec é sua razão de ser. A independência do Québec não passa apenas por um referendo vitorioso, mas a construção de condições favoráveis para isso. Mas um discurso nessa linha realmente não seria capaz de motivar a base pequista, pois, fazendo uma analogia imperfeita, alguém já viu um partido socialista ganhar eleições ao promover antes da ruptura com a capitalismo a construção apenas das condições favoráveis?

Restringida por essas dificuldades, Marois adotou um discurso ni-ni quando de sua declaração de campanha. Nem se comprometia a realizar um referendo, nem afastava qualquer possibilidade. Não tendo funcionado bem, Marois adotou uma nova retórica no debate ontem à noite (ainda que obedecendo à mesma lógica do ­ni-ni). Questionada por Legault ela declarou: “Não realizarei o referendo [e nesse momento ela fez uma pausa, deixando todo o Québec inquieto] enquanto os quebequenses não estiverem preparados”. Ainda que sucessivamente atacada por seus rivais de direita, Couillard e Legault, analistas da Rádio-Canadá pouparam a líder pequista de críticas e afirmaram que esta é a via possível que ela adote. De um lado, procura-se tranqüilizar o Québec (e, não menos importante, o governo federal de Ottawa) de que a realização do referendo não é a prioridade, ainda que ele será realizado algum dia e, de outro lado, não desmotiva a base militante ao não esvaziar suas expectativas de realizar a independência do Québec. Em recente entrevista à Radio-Canadá, o ministro das Relações Internacionais do Québec, Jean-François Lisée, reafirmou que o partido pretende realizar  um novo referendo, sem estabelecer contudo um prazo.

Nos dias que precederam ao debate de ontem à noite, diversas pesquisas de intenção de voto foram divulgadas. Os números divergem, mas a tendência é a mesma: os liberais passaram a frente do PQ nas intenções de voto. É nítido que os liberais estão sendo bem sucedidos em sua tática eleitoral, o PQ por sua vez enfrenta dificuldades em lidar com o debate do referendo. Em uma pesquisa publicada no Journal de Montréal no primeiro dia de campanha, 34% dos quebequenses votariam pelo sim em um referendo sobre a independência da província. Esse número pode servir de limite aos votos que o PQ poderá obter no próximo dia 7 e, sem surpresa, as intenções de voto no PQ têm orbitado em torno desse porcentual. O sucesso dos liberais, contudo, se deve, sobretudo, a queda da coalizão de François Legault.

Os caquistas, como são chamados os partidários de Legault, foram a grande surpresa da eleição de 2012. Ao elegerem 19 deputados, foram em grande parte responsáveis da vitória do PQ, pois a maior parte dos deputados caquistas foram eleitos em antigas regiões detidas pelos liberais, que perderam 16 deputados na última eleição, abrindo a porta para um governo minoritário pequista. Atualmente, contudo a formação de François Legault encontra graves dificuldades e recebe apenas pouco mais de 10% das intenções de voto, dificilmente o partido elegerá mais de 10 deputados e devido sua proximidade ideológica a maior parte dos votos do CAQ tende a ir ao PLQ, o que explica a vantagem que este criou em relação ao PQ.

Qual futuro para o PQ?

Pauline Marois em campanha: dificuldades para balancear o projeto independentista com os desejos da opinião pública

Em 5 de março quando dissolveu a Assembleia Geral, Pauline Marois tomava como ponto de partida que seu partido se manteria no governo e teria ainda grandes chances de formar um governo majoritário. Tudo parecido ter sido joué d’avance e a filiação do magnata da mídia Pierre-Karl Péladeau ao PQ parecia ser a cereja no bolo. Mais que a primeira ministra Marois, foi Péladeau que incentivou o retorno do debate independentista entre os pequistas. 

A jogada parecia ótima: não apenas os pequistas obteriam a maioria que buscavam como ainda reascenderiam a flama independentista entre os quebequenses. Contudo, ela se revelou um grande passo em falso. 

Ao responder às provocações de Couillard, Péladeau não somente reascendeu o espírito independentista como também fez ressurgir a suspeita de que o PQ chamaria os quebequenses à um terceiro referendo. Como lembrou ontem o jornalista do Devoir, Michel David: uma derrota do PQ em abril terá as mesmas conseqüências dramáticas das derrotas dos referendos de 1980 e 1995. 

A chegada de Péladeau ao PQ também não pode ser relativizada. Uma eventual derrota do PQ daria lugar a eleições internas para substituir Pauline Marois e neste caso, Péladeau surgiria como um dos principais nomes à sucessão. O candidato vedete que no passado já proferiu pesadas críticas ao movimento sindicalista representaria uma profunda ruptura com a tradição social-democrata do PQ, a saída de muitos pequistas ao partido soberanista de esquerda Québec Solidaire surge como uma hipótese razoável. Com isso, mesmo que sobreviva a uma derrota em abril próximo, a ruptura será tão profunda que o PQ deixará de existir como tal.

Para reverter a tendência, Pauline Marois deverá segurar o vigor de alguns de seus partidários, como Péladeau, em discutir a questão nacional quebequense de forma a tranqüilizar os quebequenses. Deverá também explorar pontos fracos dos liberais, como a luta contra a corrupção, e mostrar que é a candidata melhor preparada para relançar a economia quebequense e estabelecer boas relações com o governo federal. O debate parece ter sido uma oportunidade perdida, pois a mídia estava de acordo hoje que nenhum candidato se destacou ontem à noite.

21 de março de 2014.
Montréal, Québec.
Oscar Augusto Berg

Abaixo, fotos das capas e reportagens sobre o debate dos dois jornais distribuídos gratuitamente na rede de transporte público de Montréal.

Capa do jornal Métro Montréal que destaca “Não haverá referendo”

Reportagem do Métro Montréal: “Referendo rouba a cena no debate”

Capa do jornal Montréal 24 heures: “Discussões acaloradas”

Reportagem do jornal Montréal 24 heures: “Pauline Marois mantém a dúvida sobre um referendo”






[i] Para quem se interessar pela Carta nada melhor que escutar Bernard Drainville, ministro responsável pelo projeto, explicá-la e tentar vender seu peixe nos seguintes endereços:  http://www.youtube.com/watch?v=vHn_KvnIb9g#t=75 e http://www.youtube.com/watch?v=_WhMF6VdRrU