O debate dos chefes de partido e candidatos ao
posto de Primeiro Ministro reforçou a impressão dos últimos dias de que a
questão da independência da província está no centro da campanha, uma posição que
necessariamente não ajuda os partidos independentistas. Detalhes.
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Da esquerda à direita, candidatos: Pauline Maurois (PQ), Philippe Couillard (PLQ), François Legault (CAQ) e Françoise David (QS) |
Desde o início o mandato de FrancePo é de discutir a política
francesa, mas vou me permitir desta vez fazer um pequeno détour ao Québec, região de língua francesa da América do Norte que
já foi conhecida outrora pelo nome de Nova França. Tanto por esse passado em
comum com a França como do fato de que me encontro instalado nessa maravilhosa
região convido vocês a leitura deste post
de impressões sobre a campanha eleitoral no Québec.
O Québec é uma sociedade distinta
dentro do Canadá devido à sua língua e cultura. Se no passado os quebequenses
já se diziam, a julgar as palavras do deputado Henri Bourassa, como os
verdadeiros canadenses em uma época que os canadenses de língua inglesa continuavam
ligados ao Império Inglês, a partir dos anos 50 o Québec mergulhou em um
profundo despertar de sua identidade québécoise.
Esse processo levou os quebequenses às urnas por duas oportunidades (em 1980 e
1995) para decidir sobre sua independência do restante do Canadá. Mesmo com
dois reveses (o segundo por menos de 55 mil votos) o projeto de independência
do Québec continua a contar com apoio popular. Historicamente é o Partido
Quebequense (PQ) o principal responsável por levar adiante a idéia. O partido não detém, contudo, o monopólio
deste projeto no cenário político local, outras formações como a Option Nationale e Québec Solidaire (QS) surgem como plataformas independentistas.
Após um longo reinado de 9 anos
do Partido Liberal do Québec (PLQ), porta voz dos federalistas na província, o
PQ venceu as eleições de 2012 e Pauline Marois assumiu o posto de Primeira
Ministra do Québec. Não conseguindo obter a maioria na Assembleia Nacional e
não dispondo de alianças com outros grupos parlamentares o PQ formou um governo
minoritário. Em 18 meses de governo, Marois se dedicou, em especial, ao controverso
projeto de Carta de Valores Quebequenses[i],
que tem como principais pontos: (1) proibir o uso de símbolos religiosos ostensivos,
(2) neutralidade do pessoal da função pública e (3) tornar obrigatório que
funcionários públicos trabalhem com o rosto descoberto (o alvo aqui é bem
claro: mulheres de confissão muçulmana).
É nesse cenário que a Primeira
Ministra Pauline Marois dissolveu a Assembleia Nacional em 5 de março e
decretou a realização de eleições gerais no dia 7 de abril.
Dentre os argumentos que Pauline
Marois dispunha para respaldar sua decisão estava a recuperação da popularidade
de seu governo após uma bem sucedida exposição midiática no trágico acidente de
trem em Lac-Mégantic, que deixou 47 mortos. Ainda, sondagens publicadas entre
os meses de janeiro e fevereiro colocavam o PQ em primeira posição nas
intenções de voto, com possibilidade de obter a maioria necessária na
Assembleia Nacional. O argumento final foi que a oposição bloqueava as ações do
governo e votaria contra o orçamento que seria apresentado pelo governo do PQ.
Aparentemente a eleição caminhava
em direção ao domínio das questões econômicas. Porém, praticamente 20 anos
depois da realização do último referendo (dos quais, 10 anos com governos do
PQ) a questão nacional foi trazida de volta ao centro do debate.
Já em sua declaração de candidatura,
em 5 de março, o liberal Philippe Couillard, do qual diz se tratar de um dos
mais fervorosos federalistas do Québec, declarou ir à luta contra um governo
que odeia e que promoverá um novo referendo. As cartas já estavam postas. De lá
até ontem, pouco adiantava se tentássemos discutir de economia, da exploração
de petróleo na ilha de Anticosti ou de qualquer outro assunto, a questão da
independência sempre surgia.
O debate
A apresentação dos candidatos no
debate de ontem a noite deu o tom das discussões. Todos se referiram ao
referendo. François Legault (CAQ, direita), que abriu as apresentações,
criticou liberais e pequistas por trazerem este assunto à campanha. Couillard,
afirmou que Marois promoverá um novo referendo se eleita enquanto que ele se
ocuparia dos verdadeiros problemas do Québec, a saber: emprego, saúde e
educação. Marois, por sua vez, afirmou que a eleição não se trata da questão
referendária. Françoise David (QS, esquerda), que concluiu as apresentações,
prometeu fazer do Québec um país para todos e se lança como opção ao domínio PQ
x PLQ.
Ainda que a Rádio Canadá tenha
reservado o último dos quatro blocos de trinta minutos para a questão nacional
e identitária, não foi preciso esperar o final do debate para a independência
do Québec ser abordada. Logo no primeiro bloco de perguntas, Couillard acusou o
governo Marois de promover a divisão dos quebequenses com a Carta de Valores,
de se engajar a realizar um novo referendo assim que eleita e se recusar de
tratar dos verdadeiros problemas do Québec. Há semanas esse é o discurso de
Couillard e de maneira geral ele está colando bem: ¾ dos quebequenses acreditam
que se Marois for reeleita ela promoverá um novo referendo. A mesma proporção
de quebequenses é contrária a realização de um referendo.
Neste cenário, não é surpresa que
os liberais insistam tanto sobre a questão nacional. A idéia geral do partido é
vender a idéia de que uma vitória do PQ levará a realização de um terceiro
referendo. O bem sucedido slogan da campanha liberal diz muito sobre isso: “Juntos, tratamos dos verdadeiros problemas”.
Ele dá conta de que os liberais querem que o Québec permaneça no Canadá e que
as principais agendas do PQ, seja a Carta de Valores, seja o projeto de
independência, não constituem reais necessidades do Québec no momento e que
tratando disso o partido negligencia a economia e a criação de empregos.
Problemas do lado do PQ
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O magnata da mídia, Pierre-Karl Péladeau candidato do PQ em Sain-Jérôme |
Os pequistas estão em uma sinuca
de bico. Quanto maior o espaço que a questão nacional ocupa no debate, menores
se tornam as intenções de voto em Pauline Marois (que perdeu a liderança para
os liberais nesta semana). Em todo caso, Marois não pode fugir deste debate,
pois a julgar o artigo 1° do estatuto do partido, a independência do Québec é
sua razão de ser. A independência do Québec não passa apenas por um referendo
vitorioso, mas a construção de condições favoráveis para isso. Mas um discurso
nessa linha realmente não seria capaz de motivar a base pequista, pois, fazendo
uma analogia imperfeita, alguém já viu um partido socialista ganhar eleições ao
promover antes da ruptura com a capitalismo a construção apenas das condições
favoráveis?
Restringida por essas dificuldades,
Marois adotou um discurso ni-ni quando
de sua declaração de campanha. Nem se comprometia a realizar um referendo, nem
afastava qualquer possibilidade. Não tendo funcionado bem, Marois adotou uma
nova retórica no debate ontem à noite (ainda que obedecendo à mesma lógica do ni-ni). Questionada por Legault ela
declarou: “Não realizarei o referendo [e
nesse momento ela fez uma pausa, deixando todo o Québec inquieto] enquanto
os quebequenses não estiverem preparados”. Ainda que sucessivamente atacada por
seus rivais de direita, Couillard e Legault, analistas da Rádio-Canadá pouparam
a líder pequista de críticas e afirmaram que esta é a via possível que ela
adote. De um lado, procura-se tranqüilizar o Québec (e, não menos importante, o
governo federal de Ottawa) de que a realização do referendo não é a prioridade,
ainda que ele será realizado algum dia e, de outro lado, não desmotiva a base
militante ao não esvaziar suas expectativas de realizar a independência do
Québec. Em recente entrevista à Radio-Canadá, o ministro das Relações
Internacionais do Québec, Jean-François Lisée, reafirmou que o partido pretende
realizar um novo referendo, sem
estabelecer contudo um prazo.
Nos dias que precederam ao debate
de ontem à noite, diversas pesquisas de intenção de voto foram divulgadas. Os
números divergem, mas a tendência é a mesma: os liberais passaram a frente do
PQ nas intenções de voto. É nítido que os liberais estão sendo bem sucedidos em
sua tática eleitoral, o PQ por sua vez enfrenta dificuldades em lidar com o
debate do referendo. Em uma pesquisa publicada no Journal de Montréal no primeiro dia de campanha, 34% dos
quebequenses votariam pelo sim em um referendo sobre a independência da
província. Esse número pode servir de limite aos votos que o PQ poderá obter no
próximo dia 7 e, sem surpresa, as intenções de voto no PQ têm orbitado em torno
desse porcentual. O sucesso dos liberais, contudo, se deve, sobretudo, a queda
da coalizão de François Legault.
Os caquistas, como são chamados
os partidários de Legault, foram a grande surpresa da eleição de 2012. Ao
elegerem 19 deputados, foram em grande parte responsáveis da vitória do PQ,
pois a maior parte dos deputados caquistas foram eleitos em antigas regiões
detidas pelos liberais, que perderam 16 deputados na última eleição, abrindo a
porta para um governo minoritário pequista. Atualmente, contudo a formação de
François Legault encontra graves dificuldades e recebe apenas pouco mais de 10%
das intenções de voto, dificilmente o partido elegerá mais de 10 deputados e
devido sua proximidade ideológica a maior parte dos votos do CAQ tende a ir ao
PLQ, o que explica a vantagem que este criou em relação ao PQ.
Qual futuro para o PQ?
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Pauline Marois em campanha: dificuldades para balancear o projeto independentista com os desejos da opinião pública |
Em 5 de março quando dissolveu a
Assembleia Geral, Pauline Marois tomava como ponto de partida que seu partido
se manteria no governo e teria ainda grandes chances de formar um governo
majoritário. Tudo parecido ter sido joué
d’avance e a filiação do magnata da mídia Pierre-Karl Péladeau ao PQ
parecia ser a cereja no bolo. Mais que a primeira ministra Marois, foi Péladeau
que incentivou o retorno do debate independentista entre os pequistas.
A jogada
parecia ótima: não apenas os pequistas obteriam a maioria que buscavam como
ainda reascenderiam a flama independentista entre os quebequenses. Contudo, ela
se revelou um grande passo em falso.
Ao responder às provocações de Couillard,
Péladeau não somente reascendeu o espírito independentista como também fez ressurgir
a suspeita de que o PQ chamaria os quebequenses à um terceiro referendo. Como
lembrou ontem o jornalista do Devoir,
Michel David: uma derrota do PQ em abril terá as mesmas conseqüências
dramáticas das derrotas dos referendos de 1980 e 1995.
A chegada de Péladeau ao
PQ também não pode ser relativizada. Uma eventual derrota do PQ daria lugar a
eleições internas para substituir Pauline Marois e neste caso, Péladeau
surgiria como um dos principais nomes à sucessão. O candidato vedete que no
passado já proferiu pesadas críticas ao movimento sindicalista representaria uma
profunda ruptura com a tradição social-democrata do PQ, a saída de muitos
pequistas ao partido soberanista de esquerda Québec Solidaire surge como uma hipótese razoável. Com isso, mesmo
que sobreviva a uma derrota em abril próximo, a ruptura será tão profunda que o
PQ deixará de existir como tal.
Para reverter a tendência,
Pauline Marois deverá segurar o vigor de alguns de seus partidários, como
Péladeau, em discutir a questão nacional quebequense de forma a tranqüilizar os
quebequenses. Deverá também explorar pontos fracos dos liberais, como a luta
contra a corrupção, e mostrar que é a candidata melhor preparada para relançar
a economia quebequense e estabelecer boas relações com o governo federal. O
debate parece ter sido uma oportunidade perdida, pois a mídia estava de acordo
hoje que nenhum candidato se destacou ontem à noite.
21 de março de 2014.
Montréal, Québec.
Oscar Augusto Berg
Abaixo, fotos das capas e
reportagens sobre o debate dos dois jornais distribuídos gratuitamente na rede
de transporte público de Montréal.
Capa do jornal Métro Montréal que destaca “Não haverá
referendo”
Reportagem do Métro Montréal: “Referendo rouba a cena
no debate”
Capa do jornal Montréal 24 heures: “Discussões
acaloradas”
Reportagem do jornal Montréal 24
heures: “Pauline Marois mantém a dúvida sobre um referendo”